segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Acerca do documento "Diante da Situação"

Homero Santiago

Caros colegas,

Como não sou bom em discussão poética e não tenho condições de argumentar com a memória de longa data (não que a tenha perdido, simplesmente não conheço a USP dos tempos de antanho), vou me permitir alguns comentários mais chãos, ou mlehor, algumas impressões, me servindo da memória mais imediata (entrei em 1993 na USP), acerca do documento recente “diante da situação”, que nos foi enviado a todos e foi noticiado hoje pela Folha de S. Paulo.

* Sobre os meios de produção do texto e a coleta de assinaturas, não vejo maiores problemas; é uma via legítima. Porém, há de se ponderar, como fez perfeitamente o prof. Adrián: “o modo de circulação do texto, como o de qualquer texto, é parte de seu sentido, inclusive o fato de ter alcançado tão rapidamente divulgação na Folha de São Paulo”. Querendo ou não é um texto feito para sair no jornal (o que não quer dizer que tenha sido tal a intenção).

* É cansativa essa coisa toda de “excelência”, “qualidade”, etc. Em termos mais teóricos, se poderia invocar Gilles Deleuze: só os funcionários do saber costumam levar a sério tais argumentos – e sempre no mau sentido: é a desculpa para as piores coisas, para as atitudes mais burocráticas, para a constituição de um discurso afinado ao poder (com intenção ou não); em bocas cínicas é tenebroso (o que não quer dizer que todos os signatários o sejam; somente que alguns o são com certeza, e vou me permitir relacionar as ações aos bois, mesmo sem nomeá-los).

* É incrível que alguns (a maioria, ao menos dentre os que conheço, não) dos que lastimam que “excepcionalmente” se interrompa o “trabalho universitário sério e precioso” são os mesmos (dois ou três) que dispensam os alunos mais cedo porque marcaram consulta no HU – ora, bolas! por que não marcam fora do horário de aula. Houve (uma única vez, pelo menos) um que interrompeu a aula porque precisava ir ao “Banespa” (faz algum tempo).

* Dentre os arautos da excelência, há aqueles que vivem viajando e nunca se preocupam com nada relativamente aos cursos e aos alunos (há os que viajam e se preocupam, e que são a maioria). Há os que por algum motivo (em geral por ocupar cargos burocráticos), cuidam da própria vida e estão há anos dando o mesmo curso; quando o curso é bom, isso é até positivo, quando o curso é ruim, é uma desgraça para o conjunto dos alunos.

* Há aqueles que afirmam sem pudor que “as atuais estruturas de poder da USP sejam pouco permeáveis às aspirações coletivas”, mas participam plenamente dessa “estrutura de poder”, em alguns casos inclusive com cargos.

* Há os que invocam a qualidade do trabalho, sua preciosidade, etc., mas imagino: se fosse esse um critério realmente importante, poderíamos começar a avaliar os que ocupam toda sorte de cargos (especialmente os de direção) para ver se o satisfazem. Por exemplo, enoja-me sempre a expressão “estudante profissional” usada pejorativamente. Eles existem, não tenho dúvidas, mas é bom dizer que existe administrador profissional, aqueles que, à la PMDB, agarram o peixe e nunca o largam. Por exemplo, há um candidato a reitor, agora, que já em 2000 ou 2002, numa greve de estudantes, esteve na FFLCH e foi alvejado como uma galinha ou coisa parecida, pouca importa; a questão é que já era da reitoria havia anos; lá continua. São dez, doze, treze anos: isso não é um professor-administrador profissional? Somos comandados por uma casta que se reveza, famílias que dividem o poder (uma pró-reitoria aqui, um voto ali, uma verba acolá, etc.).

* Dentre os signatários, há alguns que conheço há pelo menos vinte anos (como disse, entrei em 1993 na USP) e nunca foram a favor de nenhuma greve, de nenhuma ação contestatória; uns por índole, muitos porque sempre estiveram ao lado do poder. No caso destes últimos, mesmo que compreensível o espírito Marco Maciel (se há governo, sou a favor), ao menos que tenham a decência de não assinar os questionamentos que vêm no documento, os quais, na boca de alguns, só pode soar como corpo estranho, um coup de force motivado pelo momento.

* Acho uma banalidade discutir se os métodos dos estudantes são bons ou ruins, pois são os únicos disponíveis. Ao menos, algum mérito eles têm: fazem as pessoas se articular em torno de documentos como “Diante da situação”.

* São os melhores expedientes? Não sei, muito provavelmente não. Mas o caso é que renegá-los é simplesmente jogar às traças algumas das formas de combate mais antigas e eficazes de qualquer grupo de contestação. Há alternativas? Sim, mais confortáveis, menos constrangedoras, mas que não são a todos acessíveis. Tomo a liberdade de retomar aqui trecho de uma mensagem que enviei a esta mesma lista há alguns anos (as questões se repetem, os comentários também o podem): “Para determinar certas transformações sociais, estou certo de que comprar um deputado é uma maneira mais ‘higiênica’, por assim dizer, para alcançar o mesmo objetivo que uma ocupação de terra, mas será que a compra de parlamentares é acessível a todos? Pois então, há gente que compra deputado, há reitores que compram chefes de unidades, há quem faça piquete, e assim por diante. (A respeito desse ponto, para que não fique no vazio, menciono uma reportagem do Estadão, 14-06-09, p. A24, cujas fontes foram especialmente professores titulares da universidade: ‘Alguns apontam que, na prática, a reitora tem conseguido aprovar medidas nas votações do Conselho Universitário [...] por conta de uma razão: é dela a chave da USP (cerca de R$ 3 bilhões) vai para despesas fixas, como custeio e salários. Rendas extraorçamentárias, como as taxas e laudos produzidos pelas unidades, passaram a ser centralizadas na reitoria. Essa seria a moeda de troca de Suely.).”

* Pois, então. Se queremos mudar algo, os signatários (ingênuos e mal-intencionados, indistintamente) farão uma vaquinha para comprarmos votos no CO? Quem sabe dessa forma não se precisa mais de cadeiraço. As palavras são rudes, sim, mas mutatis mutandis sabemos todos que as coisas funcionam assim, todos tomamos parte de alguma comissão, participamos de colegiados, conhecemos o tipo de mando que a reitoria exerce, e sabemos bem o que é o poder na USP – diz-se que a universidade é fechada à sociedade, mas é um engano; a USP é a cara do país, da sociedade brasileira: poder concentrado, que acaricia e sabe cooptar quando convém, violento quando precisa. Quando vamos “mudar vigorosamente de atitude”? Contra cadeiraços é fácil, difícil é dizer às claras como as coisas funcionam.

* Por fim, não falo dos métodos, mas em geral muitas das teses do movimento estudantil (e das análises que as sustentam) são lastimáveis. Certo fetiche com a ideia de “diretas para reitor”, inclusive (se as tivéssemos não se mudaria muito a universidade, talvez até piorasse). Agora, um mérito os estudantes têm: fazem política, e a fazem às claras (um cadeiraço é um ato político claro para quem quiser ver). Na contramão: 1) os mandatários da universidade sufocaram a política universitária, e por isso ela só pode aparecer sob a forma da explosão, da desordem; 2) não deixam que se faça política, mas a fazem muito, sempre escondido e de maneira mistificada. Por que Rodas é reitor? porque era próximo a Serra; por que está em desgraça? porque o grupo de Alckmim está tomando conta do PSDB (Folha de S. Paulo dixit). Isso é política, acho normal que aconteça. Mas aventar a qualidade, a excelência, a vida universitária, os princípios de não-sei-o quê, etc., etc., isso é mistificação; talvez sejam palavras bonitas para a imprensa, porém não dizem nada da realidade universitária que conhecemos.

Desculpem o malajambramento das impressões.

3 comentários:

  1. Apesar de se mostrar contrário a muitas de suas teses, o prof. Homero deixa clara sua defesa dos meios utilizados pelo movimento estudantil, como o cadeiraço. Segundo o prof. Homero, o cadeiraço tem sido o único meio de os estudantes fazerem política na instituição universitária. Não discordo que o cadeiraço seja um instrumento político que pode forçar transformações importantes na instituição universitária. Entretanto, se defendermos o cadeiraço como nosso único instrumento político disponível, corremos o risco de anunciar a pobreza e a miséria do movimento estudantil. Não somos capazes de criar novos meios de se fazer política? Obstruir o acesso às salas de aula, interrompendo parcialmente o funcionamento da instituição universitária, tornou-se o instrumento político por excelência? Há, ainda, uma consequência mais perniciosa dessa perspectiva. Se consideramos que o único modo de se fazer política na instituição universitária é rompendo com sua normalidade institucional, ao mesmo tempo estamos afirmando que a própria normalidade institucional universitária não é, ela mesma, permeada e motivada por questões políticas. Tornamo-nos incapazes de ver que muitos dos entraves mais enraizados de qualquer transformação institucional da universidade também se encontram no andamento das aulas, na organização curricular, no fato de alguns professores não assumirem suas funções institucionais com responsabilidade. Criou-se um consenso e uma aceitação tão absolutos em nosso departamento que as greves e as paralisações, sejam elas quais forem, incidem minimamente sobre a normalidade institucional, pois me parece que ela já se tornou impermeável a qualquer acontecimento político. Volto a dizer: não sou contra o cadeiraço. A voz calada precede o grito. Mas temo que, finda a greve, nos acomodemos novamente à normalidade institucional, justamente por considerarmos a sua suspensão o único modo de se fazer política. Então, o currículo será o mesmo, as aulas serão as mesmas, os professores serão os mesmos, os alunos serão os mesmos, a Filosofia será a mesma.

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  2. Oi, Eduardo. Achei sua ponderação excelente e concordo em parte com o que você diz - especificamente com a ideia de que o cadeiraço não deve(ria) ser "o instrumento político por excelência" do movimento estudantil (ME), sob pena de perdermos o político que vige no cotidiano da universidade, e não apenas nos curtos períodos de greves. Eu adoraria poder dizer, lembrando das teses do Benjamin sobre a história, que nesses curtos momentos instauramos pequenos regimes de exceção. Infelizmente, em grande parte dos casos não é assim: a regra da violência e do autoritarismo não se quebranta, ao contrário, ela se abate sobre nós e aniquila qualquer possibilidade de surgimento do novo. A resposta à tentativa da exceção tem sido imediata - corte de luz e de água, atuação da PM, ajuizamento do processo de reintegração de posse, encaminhamento administrativo dos processos de expulsão dos alunos.
    Se alguns grupos pequenos, minoritários mesmo dentro do ME, ignoram a política que vivemos desde a sala de aula e que atravessa todas as veias da instituição, há muitos outros, inclusive pessoas independentes, preocupadas com o feijão com o arroz da vida universitária, que gastam muito do seu tempo em reuniões departamentais, comissões de graduação e de pós, comissões de pesquisa e de assuntos técnicos, ou de uso dos espaços. No semestre passado fiz parte de um desses grupos de representantes de estudantes da pós da FFLCH e tentamos participar da política universitária. A política que vi foi a de esvaziamento dos órgãos deliberativos e a do esmagamento do espaço público e de debates, graças às políticas de bastidores (essas, sim, imperantes na FFLCH e, imagino, na USP), a uma preocupação com a "eficiência burocrática" e a um espírito fisiologista que imanta quase tudo.
    Para mim, não precisamos abdicar da vida política "na normalidade" por conta do cadeiraço. O ideal, era resolvermos tudo na "normalidade". Mas não vejo como, pois a "normalidade" que temos está fundada em uma estrutura que poderia ser representada justamente por uma máquina de moer a política mesma. É por isso que os que se apegam a ela (à normalidade), nesse momento, me parecem os mais autoritários dentre todos. Não por necessidade, não porque não poderíamos ter outras estruturas e instaurar outras normalidades, mas porque a que se encontra estabelecida serve apenas aos que aceitam viver fora do âmbito da política. Mas seu funcionamento chegou ao seu limite. A crise institucional está aí, não é à toa. Saudações

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  3. Enquanto vivermos em uma espécie de feudo acadêmico, com senhores sentados em suas cátedras inatingíveis, tratando alunos como filhos rebeldes da senzala, os cadeiraços serão a única voz que os comoverá a levantar a b...

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